“A Luísa aprendeu com este Atlântico a investir sempre – um brado contínuo cujo eco elucida-nos sobre a verticalidade das montanhas e a constância das ondas, tão essenciais à sobrevivência coletiva..”
Irlando Ferreira
ILHA em IV atos
de Luísa Queirós
O exercício de apresentar ao público um olhar sobre a obra da Luísa Queirós a partir do pressuposto curatorial e temporal, requer ousadia e algum silêncio. A Luísa dedicou o seu ofício à criação de espaços oníricos onde as utopias são possíveis. Este universo de múltiplas camadas é, essencialmente, composto de sonhos, diálogos, questionamentos, resistências e muita coragem. A artista posiciona-se de peito aberto e espírito elevado perante todas as lutas e desafios. É fundamentalmente, sobre esta perspetiva que interessa abordar a sua obra. Este diálogo e abordagem crítica focam a sua dimensão pictórica em particular, mas, tratando-se de uma artista multidisciplinar, a sua criação integra naturalmente diferentes materiais, técnicas, tecnologias e linguagens.
Luísa Queirós assume-se claramente como uma contadora de histórias que usa a tela como espaço cénico: “as pessoas que lá estão são personagens de uma peça de teatro”. Esta deixa serviu de inspiração para ir buscar à dramaturgia os elementos para costurar este olhar sustentado pelo conceito de ILHA, entendido nas suas múltiplas simbologias, significados e interpretações: lugar de imaginação e liberdade, solidão e resistência, independência e isolamento… Este trabalho apresenta uma peça em IV Atos, guiada pela poética visual e as problemáticas nela codificadas. É preciso silêncio para escutar os múltiplos gritos presentes na sua obra. A Luísa aprendeu com este Atlântico a investir sempre – um brado contínuo cujo eco elucida-nos sobre a verticalidade das montanhas e a constância das ondas, tão essenciais à sobrevivência coletiva.
ILHA em IV atos
Galeria Luísa Queirós:
Ato I Onírico Manifesto
Fala-nos dos tempos, das gentes e das suas tensões, mas também do imaginário e da poética da obra de Luísa Queirós. A série “Burrocratas”, que compõe parte deste ato, problematiza e questiona a máquina do Estado e lança questões como: “Vamos deixar que as coisas continuem assim?”. As restantes cenas convidam-nos a uma viagem neste universo onírico que marca a sua obra.
Ato II Negras, Brancas, Loiras – Famílias
Composta pela série “Famílias caboverdeanas de 1900 e outras famílias”, (1997 a 2003), trata-se de um discurso criativo e antropológico sobre a condição mestiça das famílias cabo-verdianas. Esta série satiriza e problematiza as contradições no seio desta sociedade, bem como realça a sua beleza – resultante da miscigenação.
Ato III Êss Mar
É um mergulho nesse mar imenso para daí extrair argumentos que falam dos barcos abandonados e os naufrágios do corpo, da alma… enfim, metáfora da decadência social. Este ato é, também, composto por peças escultóricas, que revelam outras motivações estéticas e sentimentais da Luísa Queirós na sua estreita relação com o mar.
Galeria Zero:
Ato IV Jangada de Nós.
Apresenta um diálogo poético a partir de “A Jangada de Pedra” de José Saramago. A série “Momentos Mágicos”, corpo deste ato, transfere para a linguagem pictórica as emoções despertadas pela leitura e pela apropriação de personagens desta obra literária para, como refere Saramago, dar lugar a objeto estético autónomo que é a pintura.
Notas Biográficas
I
Nasceu em Lisboa onde viveu, durante a infância e juventude, num rés do chão da Rua da Bica que tinha como única abertura para a rua uma porta com postigo. Dessa espécie de moldura, Luísa e o gato observavam o ascensor que há mais de um século sobe e desce a estreita e movimentada rua que liga o Cais do Sodré ao Bairro Alto. Junto ao postigo, tinha por hábito colocar um vaso com uma planta esperando, ansiosa, o seu crescimento. Se poucas plantas sobreviveram à falta de luz, a sua imaginação, o gosto pelas flores e pelos gatos, a atração por um mundo mais colorido, luminoso e fantástico, cresceram e nunca mais a abandonaram.
II
Com uma bolsa da Fundação C. Gulbenkian frequentou o Curso Geral de Pintura da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, concluído em 1964. Nessa escola começou o seu percurso de luta antifascista e de resistência cultural e conheceu Manuel Figueira, com quem veio a casar e com quem veio, pela primeira vez, a Cabo Verde, em 1972. Nessas férias, embarcaram num falucho para conhecer Stº Antão, mas tão tormentosa foi a viagem e tão grande foi o susto que nunca mais regressou à ilha que, durante anos, se limitou a observar do seu atelier de Rua de Praia. Não voltou a viajar de barco, mas nunca mais as viagens e os naufrágios deixaram de fazer parte do seu imaginário.
III
Seis meses antes da independência regressa definitivamente a Cabo Verde. Continua ainda por algum tempo a desempenhar a profissão de professora, mas em finais de 1976 aparece como uma das fundadoras da Cooperativa Resistência, em resultado da maravilhada descoberta da tecelagem tradicional, de um trabalho de investigação e de uma enorme vontade de dignificar as artes locais. Desse casamento – como Luísa lhe chamou – entre artistas e artesãos, entre o trabalho de criação artística e o labor artesanal, que os fundadores da Cooperativa sempre quiseram preservar, nasce, em 1977, o Centro Nacional de Artesanato (CNA). Durante dez anos, de entusiástica pesquisa, aprendizagem, experimentação, criação e inúmeras exposições coletivas, Luísa acreditou que “os sonhos verdes e as poéticas e azuis utopias” se poderiam concretizar.
IV
Contudo, em 1989, os três fundadores são bloqueados nesse caminho das utopias e abandonam o CNA. Com Bela Duarte, em finais de 1992, Luísa ainda se lança num novo e breve projeto para “dignificar as artes plásticas Cabo-verdianas”, a Galeria Azul+Azul=Verde. Rompeu-se então, definitivamente, a linha que a ligava ao trabalho nos teares e aos projetos coletivos, mas não se quebrou o seu temperamento crítico e combativo nem a sua criatividade. Inicia então um percurso individual e muito produtivo, revelando-se como escritora – publicou duas muito premiadas obras de banda desenhada – e retomando, na pintura, temas que sempre a fascinaram como os naufrágios ou a crítica aos “burrocratas”. Mas há fios que não se rompem e as últimas obras em que Luísa trabalhava tinham por tema Aracne, a tecelã dos deuses.

“Montes Caras – ilhas submersas” , 1990
© Queila Fernandes